O relógio postado no alto da estante, soturno, em seu estalar monótono das velhas e gastas engrenagens. Sombrio, ele conta as horas, os minutos, os segundos pacientemente, espreitando-me através do vidro da caixa, talvez até saboreando-se com a minha imagem moribunda neste leito. Não consigo dormir com tranquilidade, me parece que os sons lá de fora não se atrevem a atravessar o velho vitral barroco já desbotado, e me deixam aqui, sozinho, com aquele estalar de engrenagens, ou não. Em meus delírios de noites febris, não são as engrenagens, mas sim de um corcel negro como uma noite sem lua, com cascos de fogo, que queimam o chão por onde passam, um delírio só meu, causado por esse maldito estalar desse relógio, um devaneio que piora com o badalar insóbrio, embebido no meu pavor, que cresce a cada hora, a cada momento e se desfaz com o alvorecer. Mas, assim mesmo, não consigo minha paz, pois durante o dia, vejo-o sempre lá, no alto da estante, como o abutre que espera ansioso a rês moribunda já quase morta. O vislumbre de seus ponteiros, feitos de prata, ofuscam-me a vista, que fraqueja com a idade e os males que a muito me absorvem a vida. Ah, mas se me perguntares: "Porque não mandas tirá-lo então?". Assim respondo-lhe: "Mistério". Só isso, mistério, pois por mais que ele me aterrorize, que me alucine e me cause insônia, trata-se nada mais nada menos, que meu único e leal companheiro, que me acompanha desde que fui aprisionado por este leito, que suga-me a essência de minha alma a cada dia que passa. Só agora percebo o quanto ele me valeu, agora reconheço seu trabalho, sua preocupação por assim dizer, para com minhas noites e dias de agonia. Ele não me assustava, com certeza, somente queria tornar essa miserável vivência mais emocionante, sim pois nunca a senti monótona nesses tantos anos de doença, nunca me senti só. Oh, velho relógio, que doa alto da estante me assiste em meu triste fim, nunca tiveras maledicência alguma para comigo, fora sempre uma amigo preocupado. Pena que chego ao meu fim, e tu mesmo já sabes. Não mais deliro com um corcel correndo sobre fogo, mas sim o que vejo agora é apenas um rocim velho, magro que se arrasta em meio as cinzas de uma vereda, mergulhada em neblina opaca, sem vida. Sim, creio eu, ouvir sua ultima badalada, que agora me parece tão suave e amorosa. Somente nesses instantes percebo o quanto fui ingrato, e como a todos, o final é um momento de arrependimento do mal que se proporciona tanto em vida, e agradecimento dos bens recebidos eu... agradeço... e... me arrependo.... para todo o sempre... amém.
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