Naquele tempo a energia elétrica era
coisa rara mesmo nas casas da vila, modo como era chamada a nossa cidade de
Fartura. Era apenas um vilarejo já que a maioria das pessoas ainda morava na
zona rural. É importante reconhecer o fato que no passado as distâncias
pareciam maiores muito pela a precariedade das estradas, muito pelos meios de
transportes disponíveis. O mais comum era o cavalo! Carros? Isso era uma
raridade! Mesmo as charretes com pneus como as que temos hoje ainda pouco
existiam, elas possuíam grandes rodas de madeira e eram chamadas de aranhas. No
mais eram carroças e os carros de boi.
Era uma época diferente, onde a
escuridão da noite era rompida apenas por vagos lampiões e parcas lamparinas
que mal iluminavam as salas de chão batido das casas, deixando a noite lá fora
sob o domínio do imaginário. Era nessa hora que criaturas incríveis circulavam
pelos pastos, caminhos e arredores dos sítios causando medo e criando
misteriosos acontecimentos que nunca foram explicados.
O que vou contar agora aconteceu
nessa época e fala de um casal que discutia certo dia, um final de semana
talvez, muito provavelmente na época da quaresma. A esposa tentava convencer o
marido a irem juntos a casa de sua mãe, ela insistia, pois estava com uma
criança de colo e claro que a viagem tinha que ser a cavalo. Depois de muita
conversa ela desistiu frente as alegações dele de que estava muito ocupado, e
que não era momento para se fazerem visitas.
Não dando ouvidos ela arrumou sua
bagagem pegou a criança e partiu sozinha. Não sabemos se ela permaneceu lá por
mais de um dia ou não, o que era costume de se fazer pela dificuldade dos caminhos
que não passavam de trilhas de carroça. O que temos certeza é que quando ela
voltou o sol já havia se posto. Vendo a necessidade de chegar logo em casa a
mulher tocava o cavalo para que andasse ligeiro, mesmo com a criança no colo
ela insistia. Talvez seu instinto lhe avisasse de algo ruim estava para
acontecer.
Neste mesmo caminho havia um ponto
que nomeava a trilha como caminho da paineira. Era uma árvore já neste tempo
muito alta que se destacava na paisagem margeando a trilha. Logo quando se
aproximavam deste ponto o cavalo começou a ficar inquieto, começou a “negar” o
caminho, andando e parando querendo escolher um lado da estrada. A mulher batia
os calcanhares, mas estava sem esporas, o picuá de roupas pendia na anca do
animal e a criança no colo começou a chorar. Estava envolta em panos e por cima
de tudo uma manta tecida com linhas amarelas.
Bate! Toca! Maldiz a hora e amaldiçoa
o animal! Aos poucos vão chegando sob a paineira. Nunca saberemos a hora exata,
se passava ou não da meia noite, o que temos certeza e que foi neste momento
que a besta atacou!
Surgindo das sombras a criatura
saltou direto na criança recém nascida buscando arrancá-la do colo da mãe. A
mulher mal teve tempo de recuar puxando-a para si e quase perdendo o equilíbrio.
O cavalo agitado girava meio que saltando e tentando acertar um coice na fera
que atacava. A mulher assustada segurava-se para não cair, prendendo o
pequenino ao peito evitando as garras que na escuridão riscavam o arreio e a
bocarra escancarada que tentava mordê-lo de qualquer jeito.
Por vezes a besta fera mordeu aquela
manta na tentativa de arrancar a criança da mãe! O cavalo coiceava desesperado
e acertou a criatura que uivou de dor e caiu na escuridão do lugar. A mulher em
prantos segurava-se como podia equilibrando-se no arreio enquanto o cavalo disparava
pelo caminho só parando ao chegar no terreiro da casa.
Correndo ela tentou entrar, porém a
porta estava fechada por dentro. Chamou o nome do marido, mas ele não
respondeu, dormia como uma pedra, era o que dizia. O cavalo resfolegava cansado
e agitado, assustada ela deu a volta, a porta da cozinha mesmo fechada podia
ser aberta ao se enfiar o dedo por um pequeno furo ao lado da tramela.
Ela ouviu o cavalo relinchar do outro
lado e correr. Estava em pânico e mal encontrava o furo ao passar a mão pela
parede, as lágrimas embaçavam a vista. Com pressa enfiou o dedo e alcançou a
tramela, empurrou a porta no momento em que teve a impressão de que algo virava
no canto da casa.
Trancou a porta, deixou a criança
chorando e arrastou um pilão muito pesado para impedir que a mesma se abrisse.
Olhou ao redor e certificou de que as janelas estavam fechadas, agarrou a
criança e correu para o quarto, fechou a porta e buscou a cama. Estava vazia. Acendeu
uma lamparina que estava no criado, onde também havia um terço e uma medalha de
Nossa Senhora.
Onde estaria o marido? Ela lembrou-se
da espingarda que ficava dependurada ali atrás da porta e levantou a lamparina,
mas só viu o vazio. Estava sozinha com o filho. Começou a rezar o terço e pensou
ouvir algo rondando a casa. Ao mesmo tempo a noite lá fora parecia silenciosa
demais, sem pios de corujas, nem mesmo grilos ou sapos. Foi rezando mistério
após mistério que o cantar do galo a fez saltar na cama. Já estava amanhecendo
e ela nem percebera, aos poucos pelas frestas do telhado alguns raios de luz
começavam a brotar. Os animais anunciavam o raiar do dia, uma vaca que mugia a
espera de ser ordenhada e as galinhas que já iam pelo terreiro.
O filho dormia e assim ela o deixou
na cama para procurar o marido. O que seria feito dele? Seus pensamentos iam do
terror da noite ao temor pelo homem. Olhou para a cozinha e viu que o pilão
ainda estava lá. Na sala abriu uma pequena fresta pela porta e deixou o sol
entrar. Com isso teve coragem de sair e olhar para fora. Viu o cavalo pastando
perto da cerca ainda com os arreios e os cachorros da casa estavam deitados
perto da porteira.
Logo ali sob as árvores a rede balançava!
Viu as botas do marido e a espingarda caída ao lado. Acostumado as caçadas e a
dormir no relento o ar noturno não o incomodava. Pé ante pé ela foi chegando até
ouvir o ronco tão conhecido e ter certeza de que era realmente ele. Sentiu um
forte alívio, e já ia saindo quando notou algo. O homem dormia pesado, inerte
dentro da rede com um dos braços pendendo para fora, roncava com boca aberta. Dentro
dela entre os dentes já manchados pelo fumo pendia presa uma linha amarela.
Ouço essa história desde a infância,
e os mais velhos reconheciam até mesmo os personagens, dando-lhes nomes e
rostos, mas tudo ficou no passado restando apenas a lenda e a paineira. Sim ela
existe, e eu mesmo passei diversas vezes neste mesmo caminho, mas nunca, nunca
depois da meia noite.
Fartura, 20 de abril,
José
Alexandre